6 de janeiro de 2015

Resenha: Alejandro Reyes – Vozes dos porões: a literatura periférica/marginal do Brasil

Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea

Mário Augusto Medeiros da Silva
Doutor em sociologia e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. E-mail: mariomed@unicamp.br

Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013

Vozes dos porões: a literatura periférica/marginal do Brasil é a versão modificada da tese de doutoramento do autor (apresentada na Universidade de Berkeley em 2011), que explicita quantidade significativa de inquietações e questões sobre o tema, um dos assuntos mais importantes da história literária e social brasileira contemporânea – o debate sobre a periferia, os sujeitos sociais periféricos e sua enunciação política e cultural.

O livro se insere numa trajetória de estudos construída ao longo da última década, notadamente das ciências sociais, que tentam, não sem dificuldades, analisar e demonstrar o que pode haver de novo e importante na discussão sobre a periferia no Brasil, colocada pelo ângulo da literatura e da produção cultural por intelectuais orgânicos.

O fato de sua mirada ser ainda mais estrangeira que a dos pesquisadores universitários brasileiros voltados para o assunto apresenta sua primeira boa contribuição: se quase todos concordam que a periferia não é apenas uma questão espacial e geográfica, Reyes demonstra que, enquanto ideia, a periferia ultrapassa também os limites nacionais. Nesse sentido, o que ocorre em El sótano de los olvidados, no México (de onde ele retira parte do título seu trabalho) tem muito a ver com as noites poéticas de um bar da periferia do Capão Redondo (Nascimento, 2012); as questões que envolvem os ativistas políticos e culturais são questões globais, na sua interpretação; representam, em diferentes partes do mundo, lutas sociais contra as formas e visões de mundo capitalistas, por si excludentes e destruidoras, historicamente.

 

Pôr em situação global um assunto visto geralmente como local não significa que o autor ignore as especificidades do tema no Brasil. Pelo contrário: ele, assim como outros autores, busca conectar a literatura marginal ou periférica (batizada assim no final dos anos 1990, começo do século XXI, quando o escritor Ferréz lançou Capão Pecado e organizou autores em antologias em torno daquela ideia) com os diferentes aspectos da história social, política e cultural brasileira que, progressivamente coadunados, assumiram a forma das periferias urbanas e a imposição brutal de modos de vida subalternizantes a seus moradores.

Reyes não deixa seu leitor esquecer alguns pontos dessa história: a formação social, a colonização e o genocídio indígena, a escravização negra e uma abolição incompleta; a posição historicamente dependente de nossas elites face às nações ibéricas, igualmente orbitais e secundárias; a aceleração do capitalismo e sua dinâmica destrutiva, promovendo uma modernidade traidora de suas promessas (liberdade, igualdade, fraternidade, emancipação), revolução industrial acelerada, migrações forçadas do rural ao urbano, do Norte/Nordeste para o Sul Maravilha, metropolização precária.

Reyes recupera esses fatos; e, na condição de brasilianista, soa-lhe impossível compreender aspectos dessa história sem observar que somos também parte inventada da formação latino-americana. Destarte, apesar de termos nos tornado independentes em 1822 – antes das lutas anticoloniais asiáticas e africanas do século XX, mas atrasados em relação a nossos vizinhos imediatos –, precisaríamos ainda descolonizar boa parte de nosso pensamento social, político e cultural.

Assim entenderíamos que fazemos parte de e somos ressonantes a contextos geograficamente distantes, mas tão aproximáveis como Oaxaca, Chiapas, Quito, Caracas, Cidade do México, Tepito, Buenos Aires, Tibete, Luanda, Maputo, Délhi etc.: somos parte de uma longa história de exploração capitalista. Mas também de luta social insurgente, nos termos dos autores a que recorre, muitos deles marxistas e pós-coloniais estadunidenses, indianos, mexicanos, franceses e pesquisadores brasileiros, com destaque para, entre outros, Mike Davis, José Rabasa e Gayatri Spivak.

Nessa forma de observar o problema, não se pode deixar de lembrar que foi Roberto Schwarz (2000 [1977]) quem escreveu, em As ideias fora de lugar, sobre as condições sociais de produção do escritor no Brasil – um país periférico do capitalismo do século XIX, capaz de produzir Machado de Assis –, demonstrando assim que, sempre imprevisível, existe a história. E que também nosso romancista tem de se colocar em compasso com o tique-taque do mundo, lidando com as questões da história mundial para formar sua composição literária. Válida para a análise acerca de Machado, isso também foi suscitado como mesma senda a seguir para discussão da literatura periférica do final do século XX (Silva, 2013). E é o que Vozes dos porões faz com competência.

A literatura periférica brasileira é um desses imprevistos históricos. Surgida em meio ao desmonte neoliberal e pós-ditatorial dos anos 1990, nas condições inóspitas de bairros sempre associados ao vazio, à violência e à pobreza, no senso comum, foi capaz de pautar, coletivamente, questões contemporâneas do Brasil. Obras como Capão Pecado, Manual prático do ódio, Da cabula, O trem, Suburbano convicto etc. e saraus como os da Cooperifa, Elo da Corrente, Binho, entre outros, promovem uma ressignificação de sentidos e de visões de mundo da e para a periferia, dos e para os periféricos. E a sociedade circundante, que, obrigada a estar atenta aos fatos em ação, tem de se repensar.

Ainda assim, as ações coletivas empreendidas por aqueles escritores não se restringem aos seus cenários imediatos: para além de suas viagens pelo Brasil, também promovem intercâmbio de ideias e ações com ativistas e escritores internacionais: vale lembrar as viagens, em diferentes momentos, de escritores como Ferréz, Sérgio Vaz, Allan da Rosa, Rodrigo Ciríaco para Argentina, Paris, Berlim, Cidade do México, Maputo, Luanda e suas periferias. Também vale lembrar que, não poucas vezes, essas viagens são mediadas por pesquisadores daqueles países, atentos ao tique-taque do mundo, traduzindo suas obras, apresentando-os a esses novos públicos, criando eventos culturais e políticos – promovendo a circulação das ideias e as aproximações entre intelectuais orgânicos das periferias globais.

Além de, na Parte I: A periferia se faz presente (p. 22-94), apresentar algumas dessas questões, de maneira interessante, e debatê-las em perspectiva histórica, Reyes confere também especial atenção a quatro tópicos importantes na discussão sobre a ideia de literatura periférica, na sintomaticamente batizada Parte II: Na contramão (p. 96-219): os usos da memória social como arma política; o emprego da língua, na tensão entre oralidade e a gramática, que encerra uma discussão sobre o poder; o escritor, o intelectual, o ativista político cultural dessa literatura que aparece sob a figura do mediador entre diferentes mundos; e, por fim, o debate sobre as formas da violência e os sentidos que ela assume na composição literária periférica.

No que tange à literatura periférica, os usos políticos da memória coletiva cumprem diferentes funções, seja de conectá-la a formas estéticas ou elementos históricos anteriores ou, ainda, conferir-lhe identidade histórica e comunitária: a lembrança de como os periféricos foram parar na periferia, além de criar e funcionar como um testemunho de identidade, tem o papel de não apenas demarcar a diferença e um inimigo de combate mas, também, gerar uma relação afetiva com a perifa, a quebrada, as vielas. Nesse sentido, contra a constante visão da precariedade tem-se a construção sísifica de uma contraimagem. Mas, como nos lembra Reyes, pensando com Albert Camus, acerca do mito, deve-se imaginar que Sísifo tenha sido feliz e esse trabalho criativo não seja inglório ou em vão, capaz de gerar frutos que trafegam da autoestima à construção de uma identidade política e cultural emancipadora.

Seu debate sobre a questão dos usos da língua é um ponto alto do livro. Aqui, o autor extrapola o tema da literatura periférica brasileira para colocá-la em situação com a história da colonização latino-americana, mormente da América hispânica. Reyes recorda como se dá o processo de dicionarização da língua espanhola e sua função na empresa colonial. O controle do uso da língua é uma forma de dominação de um grupo sobre outro. E sua normatização entre o que é um absolutamente certo e um absolutamente errado constituem-se numa gramática do poder e de dominação.

Ora, as primeiras críticas que os escritores periféricos sempre recebem é a de que escrevam errado e cometem assassinatos em seus idiomas pátrios. Sendo a fala produto do pensamento, subjaz a crítica, raramente explicitada, de que também são incapazes de idear o mundo. De outro lado, os pesquisadores e interessados que os tentam estudar e os respeitar são acusados de legitimar a ignorância, dignificar o erro. Ou, quando há um pouco mais de civilidade na discussão, estudar uma literatura menor (escapando ao sentido conferido a essa expressão por Gilles Deleuze e Félix Guattari) ou uma literatura em sentido lato, sem o L maiúsculo, um relato, um documento social, com algum interesse para as ciências sociais, exclusivamente.

O autor enfrenta essas questões com muita propriedade, de quem, além de pesquisador, também é escritor e ativista político cultural. E antes que este tópico termine (será que termina algum dia?) demonstra-nos que, nos usos da oralidade, do popular e da linguagem ao rés do chão, do trabalho e do suor, tem-se a construção de um mundo em emancipação. O escritor periférico – não apenas no Brasil –, os ativistas, os moradores das periferias, nesse embate quotidiano, têm a possibilidade de criar os caminhos da sua liberdade e autolegitimação. É muito interessante a análise que faz, nesse ponto, da personagem Filomena Da Cabula, da peça homônima e premiada de Allan da Rosa (2006).

Alejandro Reyes recorda também que o intelectual periférico é um sujeito entre dois mundos. E, nesse caso, padece do drama da bifrontalidade, que é o de procurar criar interlocução e inteligibilidade entre as duas margens do rio, correndo o risco de não ser compreendido ou de trair sua mensagem. Em grande medida esse é o drama de todo intelectual insurgente, subalternizado e que busca a emancipação plena, inclusive das armadilhas identitárias que, paradoxalmente, mantém-no na condição subalterna ao passo em que lhe conferem uma identidade política e cultural.

Os dramas da mediação, portanto, colocam ambiguidades constantes aos intelectuais insurgentes, que partem do o quê, para quem, por quê, por quem se escreve até os limites do diálogo, inclusive com seu antagonista histórico e interlocutor a contragosto: o sistema, a mídia, a elite, o centro, a metrópole, os brancos, o Estado, o capitalismo. Na fronteira dos encontros, podem-se entrever tanto traições de projetos originais como habilidade de uso das armas inimigas: o que espera um escritor negro/indígena da periferia ao falar para um público branco no centro do capitalismo global? O que acontece às obras da literatura periférica publicadas por uma grande editora do mercado editorial ou ter suas ações financiadas por um instituto cultural vinculado a um banco? Ou participar de concorrências em editais de fomento cultural do Estado, histórico organismo minguante da periferia e detentor do monopólio da violência legítima, useira e vezeira nas estatísticas policiais?

O autor nos propõe observar a sociedade brasileira a partir de uma de suas mediações fundantes – e talvez tão constante quanto o patriarcalismo e o favor –, qual seja, a violência simbólica, das relações sociais, internalizadas e reproduzidas quotidianamente.

Enfrenta e escapa, assim, ao debate, muitas vezes judicial, pouco analítico ou fecundo, se a literatura periférica faz ou não apologias da violência. Numa das passagens mais interessantes do livro, ao debater esteticamente o assunto, ele mostra como em pouco menos de 50 anos, da caça de um gato num episódio do filme Cinco vezes favela (1962) e a angústia de um menino, para, de outro lado, o extermínio de um outro felino por outro garoto no livro Cidade de Deus (1997), pode-se observar uma impressionante alteração da sensibilidade social para com o tema da violência. Da mesma forma que uma sociedade que legitima um organismo policial (BOPE – RJ) cujo símbolo é uma faca em caveira e ri com as representações de tortura e assassinato desse agente oficial do Estado, num filme, faz pensar quem faz apologia ao quê.

Volte-se, finalmente, ao tema da mediação e amplie-se um pouco a figura do mediador, extrapolando a análise feita sobre os escritores e intelectuais periféricos, para que se pense junto o pesquisador e analista desses temas e seus protagonistas. Alejandro Reyes desde o início do trabalho não tem problema algum em se colocar em primeira pessoa no texto, empregando a língua de maneira rica e pouco usual nas teses e livros acadêmicos, que, por vezes, o colocam em cena, parceiro e aliado dos escritores, ativistas e intelectuais periféricos que analisa. Não se trata de procedimento novo. Impossível não se lembrar da criadora da Coleção Tramas Urbanas, Heloisa Buarque de Hollanda, que com sua tese/livro Impressões de viagem (1981), sobre a literatura marginal dos anos 1970, fez o mesmo, por exemplo.

Contudo, quero pensar o papel do mediador/pesquisador, dos sujeitos que têm feito, nos últimos anos, trabalhos de orientação, iniciação científica, mestrado ou doutorado sobre esses temas ou correlatos. Muitas vezes, também no texto do Alejandro, existe a preocupação de, apesar de solidário, não querer ser normativo, indicar caminhos de como o mundo poderia ser. Mas essa vontade escapa ao controle e ao rigor do autor, porque, evidentemente, o mundo tal como ele é, especialmente depois de ter sido estudado, no mínimo, não é justo para pelo menos 90% da população mundial. É o que nos demonstra o autor na sua terceira parte, a (In)conclusão.

Apresenta-se um sujeito histórico, amálgama de variadas identidades subalternas, que se corporificou neste início de século, o periférico, e que se encontra numa circunstância de crise capitalista e da produção de excedente humano que não será reincorporado, não é um exército industrial de reserva. É um algo novo, que desafia a história e que se tem de repensar e ser ressignificado, para si e pelos pesquisadores, para estar à altura de suas questões.

Se não adianta criar uma obra periférica sem a ressignificação crítica da visão de mundo que produziu a periferia, também não adianta muito estudar o assunto de maneira asséptica. O mediador /pesquisador acadêmico padece igualmente daquele drama de ser dois, de uma bifrontalidade comunicativa. Angústia não pode ser pensado como conceito próprio às ciências sociais. Mas essa é uma tensão narrativa que perpassa as linhas de Vozes dos Porões e de outros trabalhos que tratam do tema. E também dos escritores e intelectuais subalternizados, insurgentes, de modo amplo. E isso instiga a refletir, procurar as formas de ação para ressignificar o mundo, um desafio que se encontra ao final deste livro de Alejandro Reyes, cuja leitura é altamente recomendável.

Referências

HOLLANDA, Heloisa B. de (1981). Impressões de viagem:CPC, vanguarda e desbunde. 2. ed. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

LINS, Paulo (1997). Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

NASCIMENTO, Érica Peçanha do (2012). É tudo nosso! Produção cultural na periferia paulistana. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

ROSA, Allan Santos da (2007). Da cabula. São Paulo: Toró         [ Links ].

SCHWARZ, Roberto (2000 [1977]). Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades; 34.         [ Links ]

SILVA, Mário Augusto M. da (2013). A descoberta do insólito:literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2000). Rio de Janeiro: Aeroplano.         [ Links ]

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