23 de agosto de 2013

Vozes dos Porões – uma conversa com Alejandro Reyes

Por Mário Augusto Medeiros da Silva 
IFCH/Unicamp – 20/08/2013.
Lançamento do livro.
Mediação e organização: Taniele Rui.

Vozes dos Porões: a literatura periférica/marginal do Brasil é um livro que me foi recomendado à leitura, ainda na forma de tese de doutoramento de seu autor, em Berkeley, meses atrás, por um amigo em comum – Allan da Rosa. Segundo Allan, nossos trabalhos conversavam, nossas ideias se cruzavam, tanto em função do tema comum de estudo, como de postura face a esse tema. Trocavam ideias, portanto, sem se conhecer. E numa dessas felizes circunstâncias da vida, recebi, um mês atrás, o convite de Taniele Rui, para estar aqui e conversar sobre Vozes, agora em livro, pela editora Aeroplano, na coleção Tramas Urbanas.

De saída, afirmo que o adjetivo feliz vem a calhar para a leitura que fiz do livro de Alejandro, de um estado em que me encontrei ao finalizá-lo. A quantidade de inquietações e questões que ele apresenta em seu trabalho, sobre o tema e sua análise, bem como à sua postura face a este tema – o debate sobre a periferia e sua enunciação política e cultural – é grande o bastante para que minha leitura, seja por si só, insuficiente e tão somente uma possibilidade. Vocês dirão: mas isso se dá em qualquer livro. Estão corretos. Mas, creio eu, isto se dá especialmente quando o livro é bom.

Bom em que sentido? A começar por Vozes se inserir numa trajetória construída ao longo dos últimos anos de estudos, notadamente das Ciências Sociais, que tentam, não sem dificuldades, analisar e demonstrar o que pode haver de novo e importante na discussão sobre a Periferia no Brasil, colocada pelo ângulo da literatura e da produção cultural.

Sua inserção se dá de uma mirada ainda mais estrangeira que a dos pesquisadores universitários brasileiros voltados para o assunto (poucos são moradores de bairros periféricos). E é aí que, em minha opinião, o trabalho traz sua primeira boa contribuição: Se quase todos concordam que a periferia não é apenas uma questão espacial e geográfica, Alejandro nos demonstra que, enquanto ideia, a periferia ultrapassa também os limites nacionais. Neste sentido, o que ocorre em El Sótano de los Olvidados, no México (de onde ele retira parte do título seu trabalho) tem muito a ver com as noites poéticas de um bar da periferia do Capão Redondo (para lembrar aqui do trabalho de Érica Peçanha); as questões que envolvem os ativistas políticos e culturais são questões globais, representando, em diferentes partes do mundo, lutas sociais contra as formas e visões de mundo capitalistas, por si excludentes e destruidoras, historicamente.

Por em situação global um assunto visto geralmente como local não significa que o autor ignore as especificidades do tema no Brasil. Pelo contrário: Alejandro, assim como outros autores, busca conectar a Literatura Marginal ou Periférica (batizada assim no final dos anos 1990, começo do século XXI quando o escritor Ferréz lançou Capão Pecado e organizou autores em antologias em torno daquela ideia), com os diferentes aspectos da história social, política e cultural brasileira que, progressivamente coadunados, assumiram a forma das periferias urbanas e a imposição brutal de modos de vida destruidores, de cima para baixo, a seus moradores.

Nunca é demais lembrar alguns pontos dessa História: a formação social, a colonização e o genocídio indígena, a escravização negra e uma Abolição incompleta; a posição historicamente dependente e – não se esqueçam – periférica de nossas elites face às nações ibéricas, igualmente periféricas e dependentes; a aceleração do capitalismo e sua dinâmica destruidora, promovendo uma modernidade traidora de suas promessas (liberdade, igualdade, fraternidade, emancipação), revolução industrial acelerada, migrações forçadas do rural ao urbano, do norte/nordeste para o Sul Maravilha, metropolização precária.

Alejandro não nos deixa esquecer isto; porém, nos faz lembrar, por vezes a contragosto, que somos também parte inventada da formação latinoamericana. E que, apesar de termos nos tornado independentes em 1822 – antes das lutas anticoloniais asiáticas e africanas do século XX, mas atrasados em relação a nossos vizinhos imediatos – precisamos ainda descolonizar boa parte de nosso pensamento social, político e cultural para entender que fazemos parte de e somos ressonantes a contextos tão aproximáveis como Oaxaca, Chiapas, Quito, Caracas, Cidade do México, Tepito, Buenos Aires, Tibete, Luanda, Maputo, Délhi etc.: somos parte de uma longa história de exploração capitalista. Mas também de luta social insurgente, nos termos dos autores a que recorre, muitos deles marxistas e pós coloniais estadunidenses, indianos, mexicanos, franceses e pesquisadores brasileiros, com destaque para, entre outros, Mike Davis, José Rabasa e Gayatry Spivak.

Não posso deixar de lembrar, neste ponto, que foi Roberto Schwarz quem escreveu, em As ideias fora de lugar, sobre as condições sociais de produção do escritor no Brasil – um país periférico do capitalismo do século XIX, produtor de Machado de Assis – demonstrando assim que, sempre imprevisível, existe a História. E que também nosso romancista tem que se colocar em compasso com o tic-tac do mundo, lidando com as questões da história mundial para formar sua composição literária. Válida para análise acerca de Machado, acredito que se deva seguir as mesmas sendas para discussão da Literatura Periférica. E é o que Alejandro faz, a meu ver, com competência.

A Literatura Periférica Brasileira é um desses imprevisíveis históricos. Surgida em meio ao desmonte neoliberal e pós ditatorial dos anos 1990, nas condições inóspitas de bairros sempre associados ao vazio, à violência e à pobreza, no senso comum, foi capaz de pautar, coletivamente, questões contemporâneas do Brasil. Obras como Capão Pecado, Manual Prático do Ódio, Da Cabula, O Trem, Suburbano Convicto, etc.; Saraus, como os da Cooperifa, Elo da Corrente, Binho, entre outros, promovem uma ressignificação de sentidos e de visões de mundo da e para a periferia, dos e para os periféricos. E para a sociedade circundante, que tendo de estar atenta aos fatos em ação, tem que se repensar. Por outro lado, as ações coletivas empreendidas por aqueles escritores não se restringem aos seus cenários imediatos: para além de suas viagens pelo Brasil, também promovem intercâmbio de ideias e ações com ativistas e escritores internacionais: vale lembrar as viagens, em diferentes momentos, de escritores como Ferréz, Sergio Vaz, Allan da Rosa, Rodrigo Ciríaco para Argentina, Paris, Berlim, Cidade do México, Maputo, Luanda e suas periferias.

Também vale lembrar que, não poucas vezes, essas viagens são mediadas por pesquisadores daqueles países, atentos ao tic-tac do mundo, traduzindo suas obras, apresentando-os a esses novos públicos, criando eventos culturais e políticos.

Além de, na Parte I de seu livro, apresentar algumas dessas questões, de maneira interessante, e debatê-las em perspectiva histórica, Alejandro confere também especial atenção a quatro tópicos importantes na discussão sobre a ideia de Literatura Periférica, na parte II: os usos da Memória Social como arma política; o emprego da Língua, na tensão entre oralidade e a gramática, que encerra uma discussão sobre o poder; o escritor, o intelectual, o ativista político cultural dessa Literatura que aparece sob a figura do Mediador entre diferentes mundos; e, por fim, o debate sobre as Formas da Violência e os sentidos que ela assume na composição literária periférica. Acredito que esta segunda parte de seu livro é também uma boa contribuição ao debate e que nos propõe questões.

No que tange à Literatura Periférica, os usos políticos da memória coletiva cumprem diferentes funções, seja de conectá-la a formas estéticas ou elementos históricos anteriores, ou, ainda, conferir-lhe identidade histórica e comunitária: a lembrança de como os periféricos foram parar na periferia, além de criar funcionar como um testemunho de identidade, tem o papel de demarcar a diferença e o inimigo mas, também, de criar uma relação afetiva com a perifa, a quebrada, as vielas, os caminhos tortos e certos do mundaréu. Neste sentido, contra a constante visão da precariedade tem-se a construção sísifica de uma contraimagem. Mas como nos lembra Alejandro, pensando com Albert Camus, acerca do mito, talvez possa se imaginar que Sísifo tenha sido feliz e este trabalho criativo não seja inglório ou em vão.

E, ao que parece, segundo sua leitura, não é. Seu debate sobre a questão dos usos da Língua é um ponto alto do livro. Aqui, o autor extrapola o tema da Literatura Periférica Brasileira para colocá-la em situação com a história da colonização. O controle do uso da língua é uma forma de dominação de um grupo sobre outro. E sua normatização entre o que é um absolutamente certo e um absolutamente errado constituem-se numa gramática do poder da dominação. Ora, as primeiras críticas que os escritores periféricos sempre recebem é a de que escrevam errado e cometem assassinatos em seus idiomas pátrios. E, de outro lado, os pesquisadores e interessados que os tentam estudar e os respeitar, são acusados de legitimar a ignorância, dignificar o erro. Ou, quando há um pouco mais de civilidade na discussão, estudar uma literatura menor (escapando ao sentido conferido a esta expressão por Gilles Deleuze e Félix Guattari) ou uma literatura em sentido lato, sem o L maiúsculo, um relato, um documento social.

Alejandro debate essas questões e as enfrenta, a meu ver, com muita propriedade, da de quem, além de pesquisador, também é um escritor e ativista político cultural. E antes que este tópico termine (será que termina algum dia?) nos demonstra que, nos usos da oralidade, do popular e da linguagem ao rés do chão, do trabalho e do suor, tem-se a construção de um mundo, em emancipação. O escritor periférico – mas não apenas ele, no Brasil, ou agora. Vale lembrar Antonio Gramsci e suas discussões sobre filosofia, senso comum e bom senso – os ativistas, os moradores das periferias, nesse embate quotidiano, têm a possibilidade de criar os caminhos da sua liberdade e autolegitimação. É muito interessante a análise que faz, neste ponto, da personagem Filomena Da Cabula, da peça homônima e premiada de Allan da Rosa.

Alejandro nos lembra também, mas não com este clichê que empregarei, que o intelectual periférico é um sujeito entre dois mundos. E, neste caso, padece do drama de ser dois, que é o de procurar criar interlocução e inteligibilidade entre as duas margens do rio, correndo o risco de não ser compreendido ou de trair sua mensagem. Em grande medida este é o drama de todo intelectual insurgente, subalternizado e que busca a emancipação plena, inclusive das armadilhas identitárias que, paradoxalmente, lhe mantém na condição subalterna. Restritamente, estou pensando na histórica discussão de e sobre intelectuais negros ou africanos como bell hooks, Cornel West, Frantz Fanon, Chinua Achebe, Cheikh Hamidou Kane, Ousmane Sembène, Abdias do Nascimento, Florestan Fernandes etc. Os dramas da mediação colocam ambiguidades e ambivalências constantes aos intelectuais insurgentes, que partem do “o quê”, “para quem”, “por quê”, “por quem” se escreve até os limites do diálogo, inclusive com seu antagonista histórico: “o sistema”, “a mídia”, “a elite”, “o centro”, “a colônia”, “os brancos”, “o capitalismo”.

E Alejandro ainda enfrenta a espinhosa questão das formas da violência. Da espetacularização anestesiada e tornada comum à sua historicidade e legitimidade, o autor nos propõe observar a sociedade brasileira em que, uma de suas mediações fundantes – e talvez tão constante quanto o patriarcalismo e o favor – seja a violência simbólica, das relações sociais, internalizadas e reproduzidas quotidianamente. Enfrenta e escapa, assim, ao debate, muitas vezes judicial, pouco analítico ou fecundo, se a literatura periférica faz ou não apologias da violência.

Numa das passagens mais interessantes do livro, ao debater esteticamente o assunto, o autor nos mostra como em pouco menos de 50 anos, da caça de um gato num episódio do filme Cinco Vezes Favela (1962) e a angústia de um menino; para, de outro lado, o extermínio de um outro felino por outro garoto no livro Cidade de Deus (1997), pode-se observar uma alteração da sensibilidade social para com o tema da violência impressionante. Da mesma forma que uma sociedade que legitima um organismo de estado (BOPE – RJ)cujo símbolo é uma faca em caveira e ri com as representações de tortura e assassinato desse organismo num filme faz pensar quem faz apologia ao quê.

Para finalizar, gostaria de voltar ao tema da mediação e ampliar um pouco a figura do mediador, extrapolando a análise feita sobre os escritores e intelectuais periféricos, para pensar junto o pesquisador e analista desses temas e seus protagonistas. Alejandro desde o início do trabalho não tem problema algum em se colocar em primeira pessoa no texto, empregando a língua de maneira rica e pouco usual nas teses e livros acadêmicos, que, por vezes, o colocam em cena, parceiro e aliado dos escritores, ativistas e intelectuais periféricos que analisa. Não se trata de procedimento novo. Impossível não lembrar da criadora da Coleção Tramas Urbanas, Heloísa Buarque de Hollanda, que com sua tese/livro Impressões de Viagem, sobre a literatura marginal dos anos 1970, fez o mesmo, por exemplo.

Mas aqui me fez pensar o papel do mediador/pesquisador, dos sujeitos que têm feito, nos últimos anos, trabalhos de orientação, iniciação científica, mestrado ou doutorado sobre esses temas ou correlatos. Muitas vezes, também no texto do Alejandro, existe a preocupação de, apesar de solidário, não querer ser normativo, indicar caminhos de como o mundo poderia ser. Mas essa vontade escapa ao controle e ao rigor do autor, porque, evidentemente, o mundo tal como ele é, especialmente depois de ter sido estudado, no mínimo, não é justo para pelo menos 90% da população mundial. É o que nos demonstra o autor na sua terceira parte, a (In)conlusão. Temos um sujeito histórico que se corporificou neste início de século, o periférico, que se encontra numa circunstância de crise capitalista e da produção de excedente humano que não será reincorporado, não é um exército industrial de reserva. É um algo novo, que desafia a História e que se tem que repensar e ser ressignificado, para si e pelos pesquisadores, para se estar à altura de suas
questões.

Se não adianta criar uma obra periférica sem a ressignificação crítica da visão de mundo que produziu a periferia, também não adianta muito estudar o assunto de maneira asséptica. O mediador/pesquisador acadêmico padece igualmente daquele drama de ser dois. Sinceramente não sei dizer se angústia pode ser pensado enquanto conceito próprio às Ciências Sociais. Mas este é um sentimento que perpassa as linhas de Vozes dos Porões e doutros trabalhos que tratam do tema. E também dos escritores e intelectuais subalternizados, insurgentes, de modo amplo. E que bom: isto instiga a pensar e procurar as formas de ação para ressignificação do mundo, um desafio que se encontra ao final deste livro de Alejandro Reyes, cuja leitura imediata recomendo.

19 de agosto de 2013

Estéticas das Periferias - Centro Cultural São Paulo - 29/08

http://www.centrocultural.sp.gov.br/programacao_literatura_poesia_2.html

Roda de conversa - Literatura periférica e marginal: estilos, sonhos e contradições
com: Alejandro Reyes, Allan da Rosa e Heloisa Buarque de Hollanda

Quinta-feira 29/08/2013 - 14h
Centro Cultural São Paulo
Rua Vergueiro 1000 - Paraíso São Paulo, SP 01504-000
Tel (11) 3397 4002
Sala Paulo Emilio Salles Gomes
 
O bate-papo marcará o lançamendo de dois livros. Alejandro Reyes lança Vozes dos Porões: a literatura periférica/marginal no Brasil e Allan da Rosa lança Pedagoginga. Ambos os livros são editados pela Editora Aeroplano, do Rio de Janeiro, dentro da Coleção Tramas Urbanas, coordenada pela professora Heloisa Buarque de Hollanda, que estará mediando a mesa. O livro de Alejandro Reyes, estudioso mexicano, é produto de seu doutorado recentemente defendido na Universidade de Berkley, California, EUA. Já o livro de Allan da Rosa é resultado de seu mestrado realizado na Faculdade de Educação da USP.

Entrada franca - retirada de ingressos: na bilheteria, duas horas antes do início da conversa

Veja também: programação completa do Estéticas das Periferias no CCSP

Lançamento no Sarau Poesia na Brasa - 24/08/2013

No próximo encontro do Sarau Poesia na Brasa, dia 24/08, vamos dedicar nossa atenção, pensamentos, sorrisos e questionamento para entrar em contato com a obra de Alejandro Reyes “Vozes dos Porões – A Literatura Periférica/ Marginal do Brasil”.

Nesse dia teremos o prazer de receber Alejandro em nosso terreiro, para uma prosa sobre seu trabalho e troca de saberes.

Convidamos tod@s para esse momento de aprendizado coletivo e aprofundamento das reflexões sobre nossas praticas cotidianas.

Sarau Poesia na Brasa - Bar do Carlita
Rua Professor Viveiros Raposo, 534
Dia 24/08/2013
Às 20h30