3 de outubro de 2013

Letras engajadas (Revista Cultura.rj)

Publicado em: Revistsa Cultura.rj

O mexicano Alejandro Reyes, que acaba de lançar o livro Vozes dos Porões, fala sobre a literatura periférica do Brasil


 O autor pesquisou a literatura periférica brasileira em seu doutorado. 
(Crédito: Divulgação) 


Capa do livro, lançado pela editora Aeroplano.
Na última década, a produção literária da periferia brasileira ultrapassou barreiras, atingindo novos públicos, chegando ao mercado e às universidades, extrapolando até fronteiras nacionais. O movimento chamou a atenção de Alejandro Reyes, escritor, tradutor e jornalista nascido no México. Depois de morar vários anos nos Estados Unidos e na França, Alejandro se mudou para o Brasil em 1995, onde mergulhou na cultura urbana produzida e vivenciada nas favelas e passou a estudar o que chama de “fenômeno da literatura periférica no Brasil”.

Assim nasceu o recém-lançado Vozes dos Porões, livro em que Alejandro analisa a expansão desse movimento literário, suas particularidades e suas dimensões sociais e políticas. A obra é fruto de sua pesquisa de doutorado realizada na Universidade da Califórnia, em Berkeley, mas Alejandro avisa, logo na introdução, que as inquietações que o moveram na empreitada foram mais as do ativista e do escritor que as do acadêmico ou intelectual.

Alejandro Reyes é autor de Vidas de rua e Contos Mexicanos, coletâneos de contos, e do romance A rainha do Cine Roma, finalista do prêmio Leya 2008 e ganhador do prêmio mexicano Lipp 2012 pela versão em espanhol. Seu romance de estreia foi traduzido no Brasil, em Portugal, no México e na França. Atualmente o autor vive em Chiapas, no México. Vozes dos Porões integra a coleção Tramas Urbanas, da editora Aeroplano.



No livro Vozes dos Porões, você escreve que o fenômeno da literatura periférica é forte no Brasil, mas você se foca bastante nos escritores de São Paulo. Como é essa cena no Rio?

O fenômeno começou de fato a adquirir características de “movimento” (literário, político e social) em São Paulo, sobretudo com a criação dos saraus do Binho e da Cooperifa e a subsequente proliferação dos saraus por todas as periferias da cidade, e com a publicação dos números da revista Caros Amigos dedicados à “literatura marginal”, organizados por Ferréz (foram três números da publicação editados em 2001, 2002 e 2004, que reuniram 80 textos de 48 autores oriundos das periferias do país). Mas o grande precedente que deu visibilidade à literatura periférica na década de 1990 foi o romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, justamente no Rio de Janeiro. E teve também o MV Bill e Celso Athayde, com os vários produtos culturais do projeto Falcão, em meados da década de 2000. De grande importância hoje são os muitos saraus literários que vêm surgindo há alguns anos no Rio, vários deles na Baixada Fluminense, alguns inspirados nos saraus que deram origem ao movimento em São Paulo e outros, significativamente, inspirados no trabalho de Nelson Maca e o coletivo Blackitude, em Salvador, com um viés muito mais afrobrasileiro. O último evento da nossa recente turnê com Vozes dos Porões foi justamente no fantástico Sarau da APAFunk, na Cinelândia, na frente da ocupação Manoel Congo.

A que você atribui a “profusão inusitada de obras de autores oriundos  das periferias urbanas” que se observa na última década?

Acho que tem vários elementos. Primeiro, a crise social brasileira iniciada no período da “democratização” e aprofundada na década de 1990, que criou um abismo inédito entre as classes sociais, devido às políticas neoliberais, à polarização da riqueza, a “democratização” das drogas e o aumento da violência. Essa crise trouxe, por um lado, uma reação de intolerância por parte das classes privilegiadas e o que alguns pensadores têm chamado de “cultura do extermínio” contra as populações pobres, consideradas “perigosas”. Por outro lado, essa situação resultou numa crise na mediação cultural, até então feita por uma classe média letrada. Esse vácuo na mediação cultural vem sendo retomado, agora, pelos produtores culturais periféricos, não mais com o discurso da negociação conciliadora numa suposta democracia racial, mas, ao contrário, visibilizando e escancarando os conflitos presentes na sociedade brasileira. Nesse contexto, um grande impulso foi o sucesso mercadológico de obras como Cidade de Deus, o filme Carandiru e toda a produção cultural em volta do massacre. Finalmente, o grande impulso foi o surgimento dos saraus literários, que serviram como espaços de conscientização e de formação política e literatura para muitos poetas e escritores.

Você insere essa produção literária nesse movimento cultural e político mais amplo que é o dos saraus literários, que vem se expandindo nas periferias do país desde 2000. Poderia falar um pouco sobre esse movimento?

São espaços, geralmente bares, de encontro entre poetas, escritores, ativistas e amantes da palavra, onde se recita poesia, se discutem temas culturais e políticos, se lançam livros, pela e para a população periférica. Espaços de formação não só poética e literária, mas política, de sujeitos individuais e coletivos. Hoje há uma grande variedade de formas e estilos, uns voltados mais para a poesia, outros para o debate, alguns com um perfil evidentemente periférico e outros com um viés muito mais afrobrasileiro, com a reivindicação da negritude como eixo de luta (a exemplo do Sarau Bem Black na Bahia), e inclusive outros com uma perspectiva mais global, latinoamericana, como o Sarau do Binho. É interessante notar que o fenômeno é muito dinâmico, não só pelo surgimento de cada vez mais saraus, mas do constante questionamento interno sobre o papel formador desses espaços e as ações políticas e sociais para além do sarau em si. Nos saraus da Brasa e do Elo da Corrente, na zona norte de São Paulo, por exemplo, o lançamento de Vozes dos Porões serviu como ponto de partida para debates muito profundos sobre autonomia, formação política, o papel problemático da ação das ONGs e do Estado, etc.

Cada vez essa produção literária tem mais espaço no mercado editorial. Como foi esse processo de incorporação dessa escrita ao mercado? Poderia citar alguns exemplos?

Como eu disse, a obra que abriu essa porta foi Cidade de Deus, seguida pelos números de Literatura Marginal na revista Caros Amigos. Na primeira metade da década de 2000, há uma grande quantidade de livros publicados de forma independente. Simultaneamente, houve a criação de algumas iniciativas editoriais independentes, como Edições Toró, organizada por Allan da Rosa. Mas é a partir de 2003 que autores como Ferréz começam a publicar em editoras de grande porte e a serem traduzidos e publicados em vários países, sem dúvida devido à atenção que essa produção começa a ter na mídia. Duas importantes iniciativas, ambas iniciadas em 2007, são a coleção Literatura Periférica da Global Editora, com oito livros publicados até agora, e a coleção Tramas Urbanas da Aeroplano Editora (da qual Vozes dos Porões faz parte), com curadoria de Heloísa Buarque de Hollanda, com uns 30 livros publicados sobre a produção cultural periférica. Além disso, é importante destacar a notável e crescente presença dos escritores periféricos em feiras de livros, congressos, encontros acadêmicos e outros eventos nacionais e internacionais, dialogando cada vez mais com a produção cultural “canônica”.

Inspirado pela literatura marginal brasileira, você participou de um coletivo editorial no México, onde iniciou a coleção Imarginalia, dedicada a autores oriundos de favelas e periferias urbanas. Quais são as diferenças e semelhanças entre a literatura marginal mexicana e a brasileira?

A literatura que se faz nas periferias e “barrios bravos”, por exemplo, da cidade do México, tem muito a ver com a literatura periférica brasileira: a preocupação com as temáticas da marginalidade, da violência, da pobreza, da desigualdade; o uso de uma linguagem carregada da oralidade das ruas; a preocupação com a memória, com a territorialidade e com as formas de sociabilidade locais; a vinculação com ações políticas e sociais para além da criação literária. Ao mesmo tempo, a literatura periférica no Brasil destaca-se pela vitalidade, pela vinculação muito ativa entre escritores de periferias de todo o país, com a consciência de serem parte de um fenômeno comum, pela participação de autores muito jovens, pelo pertencimento a um movimento cultural mais amplo que inclui muitas outras expressões culturais além da literária, e pela visibilidade do fenômeno tanto na mídia quanto no mercado e até mesmo na academia.

Quals são as relações que você estabelece entre o Exército Zapatista de Liberação Nacional e a literatura periférica?

O EZLN no México é um movimento revolucionário cuja principal arma de luta é a palavra e cuja principal reivindicação é a autonomia. Nos últimos 20 anos, eles têm criado um sistema de governo, justiça, educação, saúde, produção e comércio autônomo, fora da lógica do capital e sem um centavo do governo. Por outro lado, um dos eixos mais interessantes do movimento da literatura periférica são as ações políticas de criação de espaços de autonomia nas periferias. A experiência de luta antissistêmica e de construção de um mundo alternativo pelos zapatistas pode alimentar o próprio debate interno do movimento cultural periférico, no contexto das suas próprias buscas, conquistas e contradições.





Colaboração de Renata Saavedra

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